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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

BEATRIZ E DANTE - Por dante Alighieri

A treva que sucede à luz do dia, 
Pondo trégua ao lidar, doce descanso
Aos laços membros, plácida trazia.
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Eu somente a afrontar então me avanço
A luta do caminho, e dó profundo,
Que a pintar, com verdade, me abalanço. 
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Musas, e engenho altívolo e fecundo, 
Me ajudai! O que eu vi guardaste, ó mente, 
Quanto vales, aqui se amostre ao mundo. 
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Vate, guia a meus passos complacente, 
Disse eu então, vigor terei bastante, 
Para que empresa tal, ousado, tente? 
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Tu dizes que ao de Sylvio avô prestante, 
Inda em corpo mortal, descer foi dado
Das almas juntas à mansão brilhante. 
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Mas de favor tão raro, e assinalado,
Causa possa antever no grã destino, 
Que o céu em prol dos seus tinha  guardado.
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 Ele d'ata mercê não foi indigno.
Pois que a Roma lançasse o fundamento
Era decreto do poder divino. 
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E Rom havia, superno intento, 
Metrópole de ser, onde tivesse 
O sucessor de Pedro o augusto assento.
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Por ti com jus tal ida se engrandece, 
Que em parte causa foi da grã vitória,
Pela qual reinou Roma, e inda floresce. 

Do vaso d'Eleição nos é notória
A ida com que a fé nos corrobora, 
Princípio à senda da celeste glória.
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A mim quem graça tal concede agora? 
Paulo acaso sou eu? Acaso Enéas?
Veio o nada que sou; ninguém o ignora. 
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Vencendo o susto que me agita as veias, 
Talvez o arrojo meu seja punido, 
Melhor meus embaraços desenleias. 
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E como quem, perplexo, e combatido, 
Já desquer o que quis; de novo pensa, 
Nem comete o que tinha resolvido,
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Da espessura assim eu na sombra densa, 
Pensando, desisti da altiva empresa, 
Que antes tentara com vontade intensa.
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Se teus ditos entendo com certeza, 
Disse do vale exímio a sombra augusta.
Do covarde temor tua alma é preza. 
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O temor aos mortais bem caro custa, 
Quando de nobre empresa os dissuade, 
Com vã sombra que o ginete assusta. 
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Porque fútil temor te não degrade, 
Dir-te-ei porque venho, e o que hei ouvido, 
Mal que do estado teu tive piedade. 
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Fui chamado no limbo, onde resido, 
Por senhora celeste, e mui formosa, 
A cujo mando me mostrei rendido. 
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Era a luz dos seus olhos Radiosa
Qual estrela o fulgor; tal voz dimana,
Angelical da Boca formosa;
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"Ó alma nobre, e meiga, Mantuana, 
Cuja fama imortal no mundo dura, 
Durará quanto dure a raça humana, 
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O amigo meu fiel, não da ventura, 
Na agreste solidão se acha impedido, 
E atrás, por vão terror, volver procura. 
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Hei medo, em risco tal, de ver perdido
Se tarde chego já para salvá-lo. 
Segundo o que no céu foi referido. 
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Tu lhe vigora o peito em seu abalo,
Com teu suave elóquio, ornado e belo; 
Será conforto meu poder salvá-lo. 
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Sou Beatriz; seu bem procuro, e zelo,
A valer-lhe em seu mal amor me excita; 
De sítio vim, onde voltar anhelo. 
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Lá na eterna mansão, de deus bendita, 
Perante Ele por mim serás louvado."
Volvo-lhe, alegre por tamanha dita; 
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Senhora, em quem reluz raio sagrado
De virtude, que os bens do mundo inteiro
Sobre-revela, em grau avantajado;
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Obedecer-te, apraz-me, e tão ligeiro, 
Que já qualquer tardança me dá pena; 
O que desejas sei, nem mais requeiro.
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Mas dize; da mansão vasta, e serena,
A que a elas voltar, não receaste
Descer ao centro da mansão terrena?
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Tornou-me; A tal pergunta, (e tanto baste)
Em resposta direi, singela e breve, 
Porque nada me enoja este contraste; 
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Aquilo, e nada mais, temer-se deve
Que de danar tem força; o que não dana, 
Só dá susto a quem é covarde, ou leve. 
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Agora a mim, por graça soberana, 
Não causa mal o incêndio mais ativo, 
Nem sorte alguma de miséria humana,
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Gentil dama há no céu, que o dó mais vivo
Tem trance em que se acha essa infelice, 
E quer à sua dor dar lenitivo. 
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A Lucia, em seu prol, cuidosa, disse: 
Com pronto auxílio acode ao teu amante; 
Talvez em risco igual se nunca visse. 
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Lucia, a quem fereza é repugnante, 
Ergueu-se, e ao lugar veio, onde eu sentada
Estava, de Rachel pouco distante,
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Beatriz, exclamou, de Deus amada, 
Parecer deixarás quem te amou tanto, 
Que por ti deixar quis do vulgo a estrada? 
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Não tens piedade do seu triste pranto? 
Não vez que o sorve rápida torrente, 
Que mais que o mar iroso incute espanto? 
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Ninguém jamais correu tão velozmente, 
Em seu prol, ou fugindo atroz perigo, 
Como eu, tendo isto ouvido, em continente, 
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Deixando o escano meu, vim ter contigo, 
Fiada em teu elóquio honesto e brando,
Que te honra, e a quem o escuta atento e amigo. 
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A mim volveu, tais ditos terminando, 
Os seus olhos que o pranto umedecia, 
E de assim mór força ao doce mando. 
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Sei desejo cumpri com alegria, 
E fiz que se arredasse aquela fera, 
Que de subir o outeiro te impedia. 
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Que terror da tua alma se apodera? 
Porque aninhas no peito um tal receio? 
Porque o vigor não tens que à mente impera?
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Três matronas no céu (seguro esteio)
Em teu favor se mostram develadas, 
E eu te livro do susto inerte e feio. 
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Quais as florinhas em botão, curvadas
Pelo gelo da noite, erguem-se fogo
Que o sol as vem dourar, desabrochadas; 
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Tal eu cobro vigor, o medo afogo,
Após o frio susto e desalento, 
E falo assim, com pleno desafogo;
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Ela que teve dó do meu tormento, 
E tu que assim cumpriste o seu mandado,
Bem hajais, que vos devo alto portento; 

Tu em mim tens de novo suscitado, 
Com tua voz facunda, o grã desenho, 
Que havia em minha mente antes formado. 
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Vai. - É d'ambos agora igual o empenho: 
Tu meu guia serás, senhor, e mestre.
Disse. O passo tomou - não me detenho, 
E o caminho cometo, áspero e silvestre. 
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