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domingo, 22 de outubro de 2017

A ENTRADA DO INFERNO - Por Dante Alighuieri

Por mim se vai na cidade gemente, 
Por mim se vai na sempiterna dor, 
Por mim se vai entre a perdida gente.
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Moveu justiça ao meu alto feitor; 
Fizeram-me a divina potestade, 
A suma sapiência, o primo Amor, 
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Antes de mim, se não da eternidade, 
Coisa se não criou, e eterna eu duro; 
Toda esperança vós que entrais deixade. 
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Palavras tais de um colorido escuro
Escritas vi no alto de uma porta, 
E disse: Mestre, o seu sentido é duro; 
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Como sagaz pessoa este me exorta; 
Todo temor há-de aqui ser proscrito, 
Toda a vileza aqui deve estar morta. 
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Chegamos ao lugar em que te hei dito
Que tu verás as almas dolorosas
Que perderam o bem, que da alma é fito.
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E quando ele, com faces jubilosas, 
Me deu a mão, com meu conforto e gosto, 
Me induziu na plagas tenebrosas. 
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Ai suspiros, pranto, alto desgosto
Ressoava pela aura sem estrelas, 
E tive logo as lágrimas no rosto. 
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Diversas línguas, hórridas loquelas, 
Palavras de aflição, acentos d'ira, 
Ronquidos, gritas, som de mãos com elas, 
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Faziam um tumulto, que ali gira
Sempre nessa aura sem cessar tingida, 
Qual pó, que o vento em turbilhões revira.
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E eu, com a cabeça já aturdida,
Disse: Mestre, o que é que estou escutando?  
Que gente é esta tão da dor vencida? 
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Tornou-me ele: Este estado miserando
As tristes almas tem desses, que a vida
Sem infâmia e louvor foram passando.
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Mistas estão co'a corja fementida
De anjos, que nem fiéis, nem revotosos
Foram a Deus, consigo só metida.
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Os céus a expelem do candor ciosos, 
Nem a recebe o Báratro abismado, 
Pois disso os réus ficaram gloriosos. 
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Disse eu: Mestre, o que tanto é lhes pesado
Que os faz de um modo lamentar tão forte? 
Tornou-me: Eu t'o direi muito abreviado. 
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Estes não tem esperança de morte; 
Seu viver cego a tal desprezo é entregue, 
Que eles invejam qualquer outra sorte. 
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Não deixa o mundo a nós seu nome chegue. 
Desdenha-os a justiça e a piedade; 
Não falemos dos teus; mas olha e segue. 
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E eu, que olhei, com tal celeridade
Vi uma insignia em roda andar voando, 
Que lhe não vi de pausa faculdade; 
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E atrás lhe vinha tão comprido bando
De gente, que jamais tivera crido
Que tenta a morte andara exterminando. 
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Apos de nela alguém ter conhecido, 
Olhei, e a sombra apercebi daquele
Que a grã renúncia fez de envilecido.
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Logo entendi, e me acertei que a rele
Seita ela era dos tais a Deus esquivos, 
E a toda a gente, que inimiga é dele. 
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Tais míseros, que nunca foram vivos, 
Estavam nus, e muito aguilhoados 
Por bespas e trovões lá efetivos.
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Estes os rostos punham-lhes regados
De sangue, que a seus pés, misto com pranto, 
Colhiam feios vermes detestados. 
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E tendo olhado mais ao longe um tanto, 
Vi gente às margens de um imenso rio, 
E disse: Mestre, deixa por enquanto, 
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Que  eu delas saiba, e neste corrupio
Que razão as faz ir tão apressadas, 
Como eu diviso pelo ar sombrio. 
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E ele me disse: as coisas reveladas 
Te serão quando d'Acheronte à mesta  
Margem alto farão nossas passadas. 
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Então, com baixa e envergonhada testa, 
Calei-me até o rio receiando
Que a  minha fala fosse-lhe molesta; 
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Eis para nós chegar-se navegando
Um velho branco por antigo pelo, 
Gritando: estás perdido oníquio bando.
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O céu, maus, nunca mais esperais vê-lo; 
Eu venho-vos levar para outra banda, 
Nas trevas eternas em fogo e gelo.
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E tu, alma vivente que aqui anda, 
Safa-te dessa gente já finada; 
Mas ao ver que meu pé mais não desanda; 
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Por  outros portos, disse, e outra estrada
Passagem pedirás, não por tal via; 
Mais leve lenho que te de barcada. 
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Não te agastes Charon, disse o meu guia, 
Assim se quer onde se pode tudo
Quando se quer, e inquirições arria. 
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Sossegou o semblante cabeludo
Do arrais do escuro lago, que das suas 
Pestanas dardejavam um fogo agudo. 
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Mas essas almas já cansadas, nuas, 
De cor mudaram debatendo os dentes, 
Logo que ouviram as palavras cruas. 
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Maldiziam a Deus, a seus parentes, 
A humana espécie, o lugar e o instante
Em que nasceram, e aos seus ascendentes. 
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Todas chorando forte, elas avante
À iníqua margem se chegaram logo, 
Que espera a quem de Deus é desprezante.
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Charon demônio com olhos de fogo, 
Vai recolhendo a todos acenando,
E dá c'o remo na que toma logo.
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Como no outono vão-se despegando, 
Uma pós outra, as folhas até que o ramo
Todo o seu manto à terra vai tornando; 
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Do mesmo modo a raça má de Adamo, 
Vão-se uma a uma da praia lançando
Por acenos, qual ave por reclamo.
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Pela onda escura assim andando, 
E, antes do seu descer do outro lado, 
Ajunta-se de cá um novo bando. 
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Meu filho, disse o Mestre com bom grado, 
Todos aqui vem ter de qualquer terra, 
Quaisquer que morrem sob divino enfado.
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A não passar o rio nenhum emperra;
Que a justiça divina os aguilhoa, 
Tal que em desejo o medo se descerra.
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Nunca passa por cá uma alma boa: 
E assim, se anda de ti Charon queixoso, 
Bem podes ver o que seu dito soa. 
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Depois disso esse campo tenebroso
Tremeu tão forte que meu pensamento
 Está, do espanto, inda em suor copioso.
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Da terra lacrimosa saiu vento; 
De luz vermelha um corisco aparece, 
O qual me tira todo o sentimento, 
E caio como homem que adormece. 




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