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domingo, 22 de outubro de 2017

A CASA DE DANTE - Por Souza Bandeira

                Em uma pequena rua de Florença, a Via Dante, prolongamento da Via Tavolini, a dois passos do belíssimo Or S. Michele, em cujas dependências funciona a Sociedade Dante Alighieri, na mesma sala onde Bocácio dava explicações públicas da Divina Comédia, depara-se ao forasteiro uma modesta casa, sobre cuja porta lê-se uma simples inscrição, em placa de mármore, anunciando ter ali nascido e vivido o divino poeta. 
                 Nenhum preparo anterior sugere ao espírito ideia especial sobre a casa, à qual os guias de viagem concedem, a custo, duas ou três linhas. Na cidade onde os cicerones agridem literalmente os viajantes para lhes mostrar os tesouros de arte e as curiosidades, nenhum se propõe levar alguém à casa de dante. É, pois, como de surpresa que, trêmulo de comoção, o estrangeiro sobre a escada da casa que encontrou ao dobrar de uma esquina. 
                 Dentro, nada de extraordinário. Uma pequena sala com duas janelas sobre a rua, e uma alcova, são os dois únicos aposentos franqueados ao público. Na alcova, onde se diz que nasceu o poeta, nada. Paredes nuas e enegrecidas pelo tempo. Nem um móvel sobre o soalho quase preto. Na sala, a cadeira em que Dante se sentava; uma máscara de gesso com os seus indeléveis traços; um busto de Beatriz; num quadro, o original de uma bela carta de Gladstone, escrita em italiano; e uma pequena estante contendo volumes, que não chegam nem à centésima parte da bibliografia dantesca. 
               Sobre uma pequena mesa, um livro coberto de assinaturas de gente de todas as partes do mundo. Eis tudo. 
                No tocante à autenticidade da casa, não há mesmo certeza absoluta. Por ilações e hipóteses chegou-se a conclusão de que ali devia ter sido a casa de Dante, atenta a vizinhança em que estava da Badia a que ele se refere uma vez, e do Bargelo, cuja torre ele dizia avistar da sua janela. 
               Os arqueólogos e os dantólogos, duas espécies de eruditos que abundam na Itália, ainda hoje discutem sobre a verdadeira casa de Dante.
                Não tem o museu a organização de outras casas de grandes homens, como a de Carlyle em Londres, a de Victor Hugo em paris, a de Voltaire em Ferney, a de Goethe em Frankfurt.
                 Por mais pobre que seja, porém, o Museu Dantesco, é a sua própria simplicidade que comove. Que importam as dúvidas porventura existentes sobre os objetos ali expostos ou sobre a própria situação da casa? Basta considerar que uma convenção estabeleceu ter sido ali a casa do grande poeta, consagrando-se assim um como templo, destinado a esta peregrinação, que de todo o mundo se faz, para venerar a memória do maior gênio poético de todos os tempos. 
                Saindo-se, porém, a passeio por aquela luminosa Florença, bem se compreende que toda a cidade, com os seus monumentos, as suas igrejas, as suas ruas pitorescas, a sua interessante população, os seus arredores, o seu ambiente perfumado, é um vasto museu, que por todos os modos nos enche o espírito de recordações do grande florentino, cuja obra, irradiando através dos séculos pelo mundo inteiro, enche as gerações de delicioso assombro e fixa no espírito imagens imortais, traduzidas numa das mais nobres linguagens jamais saídas do engenho humano. 
                  Ao se defrontarem os majestosos palácios, construídos na severa e graciosa arquitetura florentina, pensa-se nas famílias que os habitaram, e das quais fala o imorredouro poema. Placas comemorativas repetem a cada passo tercetos da Comédia, lembrando episódios ali acontecidos a que se referiu Dante, ou nomes de famílias enumeradas no poema. Que não há maior pedrão de nobreza para uma família toscana, do que poder escrever embaixo do brasão um versículo de dante, em que ela seja nomeada.  
                 Ao se admirar a belíssima catedral de Santa Maria del Fiore, não longe da pedra de Dante,pensa-se no formoso Batistério que lhe fica fronteiro, a ele chamava il mio bel San Giovanni. 
                    Quando se contempla em Santa Croce os belos afrescos da de Giotto, nos vem ao espírito os versos com que Dante saudou o gênio do amigo, que então se começava a revelar ao mundo da arte: 
Crdete Cimabue nela pintura
Tener lo campo, ed ora ha Giotto grido, 
Si che la fama di colui oscura.

Nesta mesma igreja de Santa Croce, que é o Panteon dos florentinos, vê-se o monumento de Dante, onde, aliás, não repousam os seus ossos, e no meio da praça a sua estátua, para a qual Leopardi escreveu a ode que assim termina: 
In sempiterni guai
Pianga tua stirpe a tutto il mondo oscura. 
   
               Ao se ver a solerte e enérgica fisionomia de Nicolo de Usagno, imortalizada por Donatello, ou os magníficos condottieri de Giovanni de Bolonha, ou as figuras dos Médicis, de Miguel Ângelo, pensa-se nos heróicos bandidos das guerras civis, que devastaram a Toscana, arriscando a vidacom cavalheiresco desprendimento, ao passo que pilhavam com o mais baixo cinismo, dos quais disse o poeta, referindo-se ao Arno: 
... quanto ella piú ingrossa
Tanto piú di can farsi lupi
La maledeta e sventurada fossa... 
                    As mulheres, ricamente vestidas à moda do tempo, que figuram nos afrescos de Ghirlandajo, Gozzoli, Luini, ou outros pintores muito  posteriores a Dante, fazem todas pensar nas inventivas deste, pedindo que se proibisse: 
Alle sfacciate donne fiorentine
L'andar mostrando com le poppe il petto. 

                 Porque a alma artística do grande fiorentino paira eterna sobre a cidade, mantendo um ambiente de poesia, que inspira os artistas vindouros, facilita a compreensão das obras de arte, e perpetua na raça os caracteres firmes da italianidade, que em nenhuma região da península, nem mesmo em Roma, é atingida como em Florença. 
                Quem não dirá, vendo os paraísos de Fra Angelico, sobre fundo resplandescente de ouro, com as suas espirituais madonas, com os seus alvinitentes anjos de asas douradas, em fúlgidas teorias, que o frade genial inspirou-se Cândida Rosa, que é o empíreo do dante, povoado de serafins, assim descritos: 
L'ali d'oro, e l'altro tanto bianco
Che nulla neve a quel termine arriva.
Quando scendean nel flor, di namco in banco,
Porgevan della pace e dell ardore. 


                  E as estáticas madonas de Biticelli, e os lívidos Cristos de Fra Bartolomeu, e os sonhos atormentados de Miguel Ângelo, passam pelos olhos num sopro divino de fantasia, enchendo a alma de lirismo e de terror, como se o espírito do Grande Cantor do Além Tumulo despertasse do sono eterno e emprestasse vida real àquelas obras primas. 
                   Quando se sobe a colina que domina a cidade, galgando aquela mesma ladeira de S. Miniato, cuja aspereza o Dante descreveu, e do alto do Piazzele Miguel Ângelo, têm-se aos pés toda Florença e os seus arredores, pensa-se na geração de dante, e nas que lhe sucederam, nas famílias que lutaram pelo domínio supremo, tingindo de sangue o lírio que é o brasão da cidade, e na velha Fiesole, o berço etrusco da raça, escondida nos Apeninos de onde veio: 
Quell' ingrato popolo malígno, 
Che discese di Fiesole al' antico
E tiene ancora del monte e del macigno

                   Ao longe, pelo extenso vale de Arno, perdidas na bruma do horizonte, Pistóia e Piza, as cidades rivais, cobertas de imprecações pelo glorioso poeta. 
                  E, além, somente visível à imaginação, ao norte e ao sul, toda a Itália, dos imperadores e dos papas, teatro de pequenas disputas, campo de lutas incessantes, que inspirou ao poeta as suas dolorosas estrofes: 
Ahi serva Itália, di dolore ostello,
Nave senza nocchiero in gran tempesta, 
Non donna di provincie ma bordello. 

                Passaram as lutas, desapareceram as causas das pequenas rivalidade. A Itália, cumprindo o seu glorioso destino histórico, está hoje unificada e marchando para um fim comum. E agora, mais que nunca, resplende a glória do grande gênio, verdadeiro hiato luminoso entre a treva medieval e o alvorecer dos tempos modernos, que penetrado do puro sentimento italiano, deplorava a divisão de sua pátria e anelava o futuro que hoje é presente.  
                  É por isso que das alturas de S. Miniato, à hora misteriosa do crepúsculo, em que as sombras do passado avassalam o espírito, a quem contempla Florença, radiante na reverberação do sol poente, parece ver passar ao longe do Arno a melancólica figura do Dante, arrastando o seu manto sombrio, voltada para a cidade natal a sua face pálida e pensativa. 
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BIOGRAFIA DE SOUZA BANDEIRA
João Carneiro de Souza Bandeira, escritor brasileiro, nasceu em Recife em 1865. Jornalista, advogado e professor de direito no Rio de Janeiro. Como discípulo de Tobias Barreto deixou-se influenciar pelas tendências germanistas. Além doutros estudos jurídicos e sociais publicou Estudos e Ensaios, 1904; Reformas, 1909; Peregrinações, 1910. Pertenceu á Academia Brasileira de Letras.
Este artigo belíssimo é parte da sua obra Peregrinações. 
Nicéas Romeo Zanchett 

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